Pe. Alberico Altermatt O. Cist.
Hauterive – Eschenbach
Segundo a Regra de nosso pai São Bento (nascido entre 560/575), o dia-a-dia monástico comporta essencialmente três ocupações: a oração (liturgia/ofício divino): a lectio divina e o trabalho. A Liturgia tem, na Regra de São Bento, um lugar de preferência. Entre 73 capítulos da Regra, conta-se 13 (de 8 a 20) que tratam exclusivamente da celebração da liturgia (ofício divino) – precisamente sobre a celebração da oração das Horas – e isto se faz nos mínimos detalhes. Como fundamento se põe este princípio: Portanto nada se anteponha ao Ofício Divino (nihil operi Dei praeponatur) (RB. – 3,3). De fato, é a Liturgia que dá ao dia-a-dia monástico sua estrutura e seu ritmo. Isto explica que se chegou a designar o monge/a monja como homo liturgicus.
O beneditino italiano Dom Giuseppe Anelli, num artigo sobre A vida monástica como existência teológica, escreve o seguinte: A vida monástica apareceu como um ato de adoração; o monge é “um ser que abre o seu coração para Deus” (Martin Buber, “que não se aparta do dever de amar a Deus” (Pascal) “que não se afasta do difícil Trabalho de ser cristão’ (Kierkegaard). Esta existência teológica do homem que vive na fé e pela graça, é necessariamente litúrgica e de louvor (serviço de devoção – RB.-18,24 o serviço a que eles se têm dedicado), é sua vocação específica. Sois tu, Senhor, que nos leva à alegria louvando-te porque tu nos conduziste a ti, pois nosso coração não descansa enquanto não encontrar repouso em ti (Sto. Agostinho, Confissões, 1.1,1).
A liturgia como manifestação autêntica da Igreja e da comunidade monástica.
Seria muito interessante agora pôr, cada um a si mesmo, a questão seguinte: O que é a liturgia? Temo que alguns não possam dar prontamente uma definição da liturgia que expresse verdadeiramente o essencial e que corresponda aos critérios atuais da teologia e da ciência litúrgica (porque a liturgia é, hoje em dia, uma verdadeira ciência!).
Por quê? Porque todos nós corremos o risco de fazermos talvez uma idéia demasiadamente limitada do que é a liturgia. Conservamos dela uma idéia demasiadamente reduzida (estética). Somos tentados facilmente em confundir a liturgia com o culto, com os ritos, as cerimônias. Mas isto é apenas um aspecto da liturgia! O movimento litúrgico do século XX e o Concílio Vaticano II (1962-65) compreenderam e definiram de uma maneira nova a natureza, o espírito e o significado da liturgia. A Constituição Sacrossantum Concilium (A sagrada Liturgia), promulgada no ano 1963, pode ser considerada como o documento mais belo e a mais completa doutrina que a Igreja já publicou sobre a liturgia em seus 2000 anos de história.
Definição da liturgia segundo a Constituição sobre a Liturgia.
O termo “liturgia” designa uma noção bastante rica e completa; por outro lado, não tinha sido adotado no Ocidente até o fim do século XVIII. De origem grega, a palavra “leitourgia” é formada pelos vocábulos laos / leiton = povo, e ergon ( em latim = opus) = obra de serviço. Pode ter outros significados: “obra pública”, obra do povo (genitivo subjetivo) ou também “obra para o povo” (genitivo objetivo). No terreno profano, “leitourgia” significava um serviço público, uma “prestação”; era também utilizado para uma celebração religiosa concernente a todo o povo. No uso bíblico (judaísmo helenístico, Setenta), o termo designava o culto e o serviço do tempo. Chegou a ser muito depressa, na tradição cristã, o termo próprio para a assembléia do serviço divino ou a celebração do serviço divino (na Igreja do oriente tem, atualmente, o sentido restrito e preciso de celebração eucarística).
No nº 7 da Constituição sobre a Liturgia, o Concílio Vaticano II descreve a liturgia como um diálogo, um intercâmbio vital entre Deus e o homem, como a uma ação sagrada (actio sacra) e como uma obra (exercício). Neste diálogo comunicativo, a iniciativa vem sempre de Deus: é Deus que se dirige ao homem, ou, como se diz em teologia, o aspecto de catábase, o aspecto soteriológico da liturgia. Em resumo, trata-se da santificação e da salvação do homem. Só depois vem a linha ascendente (de anábase, de latria): até o Concílio Vaticano II, esta linha foi muito acentuada e às vezes talvez ainda o seja. O aspecto de anábase ou de latria, é a liturgia enquanto louvor, intercessão, celebração, enfim, como glorificação de Deus. Mas é preciso, para começar, a “descida” de Deus (catábase), para permitir a “subida” do homem (anábase). Em outros termos: antes que o homem faça alguma coisa para Deus, é Deus quem faz algo pelo homem. A liturgia, nesta perspectiva nova e mais universal, é a Obra de Deus (em latim Opus Dei) no homem, para o homem (genitivo subjetivo) e a Obra do homem para Deus (em latim Opus Dei, mas desta vez compreendida como genitivo objetivo).
A primeira iniciativa na obra: o diálogo da salvação vem sempre de Deus (1). A intervenção salvadora de Deus desperta no homem um eco. O homem é tocado por este e esta experiência o vincula novamente a seus irmãos (2). Beneficiados todos os homens pela salvação de Deus, eles respondem por meio do louvor e da ação de graças (3). Nós reencontramos esta dinâmica e esta concatenação nos três tios de textos constitutivos da liturgia:
• Leituras: Deus se dirige ao homem em sua palavra (1)
• Cantos Reação do povo tocado pela Palavra (2)
• Orações Resposta de louvor, ação de graças, adoração (3)
Estas duas orientações complementares da liturgia: linha descendente (santificação do homem) e linha ascendente (glorificação de Deus) pertencem, depois do último Concílio, à definição fundamental da Liturgia, que se descreve, no nº. 7 da Sacrossanctum Concilium (sobre A Sagrada Liturgia), deste modo: A liturgia é o exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo, exercício no qual a santificação do homem (linha descendente) está significada por alguns sinais sensíveis e se realiza de uma maneira própria em cada um deles, na qual o culto público integral (linha ascendente) é exercida pelo Corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, pela Cabeça e pelos membros.
Em conseqüência, toda celebração litúrgica, enquanto obra (opus) de Cristo sacerdote e de seu Corpo que é a Igreja, é a ação sagrada (actio sacra) por excelência, da qual nenhuma outra ação (actio) da Igreja pode esperar a eficácia com o mesmo título nem no mesmo grau (n.º7).
Na Liturgia das Horas, a Igreja, exercendo “sem cessar” (1 Ts 5,17) a função sacerdotal de sua Cabeça, oferece a Deus um sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que glorificam seu nome (cf. Hb 13,15)(IGLH n° 15).
A obra da salvação realizada por Jesus Cristo, Verbo de Deus encarnado, é o fundamento e a fonte da liturgia. Sem dúvida, a liturgia é o cume a que tende a ação da Igreja, e ao mesmo tempo, a fonte donde procede toda sua força (SC 10).
A liturgia e seu lugar central na Regra de São Bento.
S. Bento utiliza, para a liturgia, deferentes termos e por isso vemos que, na Regra de São Bento, quase unicamente é a liturgia das horas (liturgia horarum) que entra em questão, já que a celebração diária da Eucaristia, porém, não era conhecida.
OBS.: Se aceita historicamente que o monaquismo primitivo e os mosteiros do tempo de São Bento não conheciam a celebração diária da Missa. A Eucaristia só era celebrada no Domingo. Durante a semana, uma curta cerimônia de Comunhão acontecia logo depois da Sexta: o Abade distribuía aos monges o Corpo e o Sangue de Cristo. A Missa conventual diária foi introduzida nos mosteiros na época carolíngia (clericalização do monaquismo). No ano 1000, essa prática já era corrente e os primeiros Cistercienses não se atreveram romper esta tradição.
O termo opus Dei, que São Bento recebeu da tradição patrística, tem um duplo conteúdo:
a) A obra (o serviço) que Deus realiza no homem, para o homem (genitivo subjetivo);
b) A obra (o serviço) que o homem dirige para Deus, diante de Deus (genitivo objetivo).
É deste modo que o termo opus Dei corresponde exatamente à dupla orientação da liturgia, tal como a definiu o Concílio Vaticano II: a linha descendente (ação de Deus) e a linha ascendente (resposta e ação do homem). Na antiga tradição da Igreja, opus Dei designava o conjunto da liturgia e igualmente toda a existência cristã e monástica que tem seu centro unificador na oração e no louvor de Deus. Infelizmente, com o tempo, o sentido do termo se restringiu até não designar mais que a liturgia das horas. Pelo contrário, nosso pai São Bento, na célebre máxima de RB 43,3: “Nada se anteponha ao Ofício Divino” (Nihil operi Dei praeponatur), compreende, entretanto, um opus Dei num sentido muito mais extenso e teológico.