A confrontação com a narração babilônica tinha como finalidade aprofundar a visão antropológica da Bíblia. Mas, para o leitor moderno, a leitura de Gn 1 levanta logo um problema. Os mais ingênuos talvez ainda tenham dificuldades a respeito dos seis dias da criação, mesmo entendidos com “períodos”. Outros acharão que a Bíblia está ultrapassada, já que a ciência moderna “demonstrou” que a criação não aconteceu como a Bíblia a descreveu, mas na forma duma longa evolução. É preciso, pois, nos deter um pouco sobre este problema.
O evolucionismo é uma teoria científica para explicar as origens das espécies vivas. Trata-se, pois, de uma hipótese, isto é de uma explicação possível para diversos fenômenos constatados pela ciência. Mas esta hipótese inicial vai sendo confirmada (ou infirmada) dia a dia por numerosas descobertas biológicas, arqueológicas e paleontológicas de grutas, cavernas e sítios pré-históricos, de tal maneira convergentes, que a hipótese, cada vez mais confirmada, acaba sendo aceita pacificamente, como hipótese de trabalho, por um crescente número de cientistas pelo mundo inteiro.
O grande protagonista do evolucionismo é Darwin, que, entre 1831 e 1836, viajou a bordo de um navio, colhendo informações e observações do mundo inteiro, especialmente do sul da África, das ilhas do Pacífico e da América do Sul. Hoje, já despojada do seu simplismo inicial, a teoria se torna cada vez mais aceita no mundo científico.
Uma maneira original, cristã, encontra-se em outro biologista, o jesuíta Teilhard de Chardin. Sabemos que as autoridades romanas da Igreja católica assustaram-se um pouco com as idéias dele no início; mas isto era mesmo para cumprir o costume bíblico de apedrejar os profetas antes de erigir-lhes um monumento (Mt 23, 29-30). No concílio Vaticano II, Teilhard foi citado com elogio. Hoje, embora muito discutida e controvertida, a teoria de Teilhard de Chardin pode ser aceita por qualquer cristão; parece que não haja nada nela que possa contradizer à Bíblia, até pelo contrário, existem diversos textos do Novo Testamento (1Cor 15, 20-28; Ef 1, 3-14.20-23; 4, 9-16; Cl 1, 15-20) que a teoria de Teilhard ajuda a entender melhor.
O mundo teria começado, bilhões de anos atrás, a partir de uma nebulosa ou uma explosão estelar, donde os gases estelares (plasma) foram enrolando-se, constituindo aos poucos nossas nebulosas, parafusando-se ao redor de um centro mais intenso (buraco negro), como um gigantesco caracol.
Nesta forma, as massas estelares enroladas encontram-se em estado de plasma, isto é: os átomos ainda não existem. Os prótons, elétrons e nêutrons, por causa do calor intenso andam soltos, ainda indiferenciados. Portanto, nesta forma, não existe ferro, nem manganês, nem ouro. As partículas soltas podem ainda se unir entre si de qualquer maneira imprevisível, para se tornar ouro, oxigênio o cobre, segundo as diversas combinações das partículas.
Chegamos assim à segunda etapa, a atomização. Cada partícula solta no espaço é possuidora de carga positiva negativa ou neutra (ausência de carga). As cargas do mesmo sinal se repelem e as cargas de sinal contrario se atraem. Assim vão construir diversos agrupamentos, sempre por pares de cargas positiva (próton +) e negativa (elétron -).
Em cada átomo existe sempre um número igual de prótons e de elétrons: cada próton tem que ter o seu elétron, como cada Homem tem que ter sua mulher para forma uma nova Unidade fortíssima e estável. Se um próton unir-se com um elétron, isso dará hidrogênio; se oito prótons unirem-se com oito elétrons, isso dará oxigênio; se setenta e nove prótons unirem-se com setenta e nove elétrons, isto dará ouro, e assim por diante. Os nêutrons também podem entrar na composição, girando ao redor do núcleo essencial próton e elétron, para constituir outro tipo de corpo.
Isto significa eu a união “casual” (Teilhard não nega que as associações acontecem quase ao acaso, mas nota que o resultado é uma obra altamente planejada que caminha para um ponto certo) de um certo número de prótons, elétrons e nêutrons vai dar origem a todos os corpos simples. Dissemos “casual”, porque a ciência ainda não achou leis de associações do plasma para o átomo. Para a ciência é um “acaso”. Mas, pela fé, sabemos que nada foi por “acaso”, tudo foi orientado por um fim: o Homem, e este Homem é apenas o primeiro esboço do Homem Novo, Cristo Ressuscitado, o Homem divinizado, ponto de toda a obra da criação e da salvação (Cl 1, 15-20).
Na fé, a finalidade da criação está clara. Ela não aparece na composição mecânica da matéria, nem na energia, nem na massa, mas, no entanto, é um elemento “lateral” (no vocabulário de Teilhard: energia tangencial) que provoca toda a evolução até um ponto perfeitamente determinado. A finalidade é uma realidade espiritual que a pesquisa científica não tem condições de revelar. São duas ordens de realidades distintas.
Sobre este último ponto, posso dar um exemplo bem elementar: se tenho na minha frente uma mesa, posso desmontá-la para saber como ela foi feita, peça por peça, mas esta análise não tem condições de me demonstrar se a mesa foi feita com amor ou com ódio, porque essas dimensões espirituais escapam à análise técnica da mesa. É outra categoria, é outra dimensão.
Mas aí estamos no mesmo caso do que com as provas da existência de Deus como última causa, segundo Tomás de Aquino. Tomás acreditava que, se voltasse para trás na cadeia das causas do universo, chegar-se-ia necessariamente a Deus como a última (causa final) ou a primeiro causa do universo. Hoje, ninguém mais aceita esta demonstração de Santo Tomás, porque Deus não entra na série das causas finitas como um elemento entre os outros. Deus não é um elemento na série. A série das causas naturais está completa. Não se pode mais, hoje, imaginar que falta um elo da corrente e que este elo desconhecido é Deus. Porque a ciência já descobriu todos os elos desconhecidos, e não se precisa mais da “hipótese Deus” para completar aquilo que a ciência não podia explicar. Portanto, a prova de Deus como “última causa” já não demonstra mais a existência de Deus, hoje.
Pierre Tehillar |
Assim também Teilhard e Monod. Monod diz que toda a evolução se explica apenas como um “acaso”. Aceitar uma finalidade na evolução seria aceitar um elemento irracional, que escapa à análise científica. Para Teilhard, aceitar Deus como o ponto W que determina e atrai toda a evolução do Universo rumo a um poderoso “buraco negro” invisível aos nossos olhos, mas que determinaria todo a evolução do cosmos, coloca novamente Deus entre as causas finitas e incorre em perigo de panteísmo.
Mas deixemos aí esses pontos controvertidos e voltemos à evolução segundo Teilhard e outros cientistas.
Jacques Monod |
Neste ponto, vai dar-se um pulo extraordinário. Se cada etapa analisada representa um novo estado da matéria, a passagem da matéria inanimada para a vida é o ponto mais decisivo, qualitativo, que introduz a um mundo novo. Os antigos falavam aqui dos seres “animados”, isto é, que tinham uma “alma”, princípio espiritual de vida. Os cientistas modernos não conseguiram ainda explicar a natureza exata da vida.
Certas moléculas “gigantes” são constituídas por milhares de átomos diferentes, numa estruturação cada vez mais complexa, é a “complexificação” progressiva de Telhiard. Neste momento, dá-se um passo, exteriormente imperceptível, mas de imenso alcance: a passagem da molécula gigante para a célula. Apareceu a vida. O sinal da vida é que a célula é capaz de se reproduzir por geração. A molécula gigante não o é. A célula assimila outras partículas do universo (para se alimentar), cresce e se multiplica. Isto é o passo da vida. Os cientistas estão procurando se certas composições químicas produzem sempre uma célula: será possível “fabricar vida”? Fica muito discutido hoje.
A célula representa a forma mais elementar de vida. A célula se produz da maneira seguinte: ela se parte pelo meio, dando origem as duas novas células idênticas, as quais se partem de novo, dando origem a novas células em progressão geométrica, a um ritmo espantoso. Daqui a pouco existem milhares e, em seguida, milhões, bilhões e bilhões de células do mesmo organismo.
Mas as células começam também a se especificar a se complexificar, segundo as necessidades da vida. Elas crescem em número no organismo, tendo cada qual sua função própria, cada vez mais especializada, a serviço do organismo (Ef 4, 15-16; 1Cor 12, 14-26).
Daí nasce a imensa árvore da vida, com os seus milhares de espécies diferentes, borbulhando pelo mundo inteiro, invadindo, renascendo, multiplicando-se cada vez mais. Parece que, aqui também, a vida nasceu ao acaso, aos empurrões: a vida é uma imensa e perpétua guerra, na qual os seres vão se devorando uns aos outros. As formas mais fortes vão progredindo e se impondo, enquanto que as formas menos adaptadas vão desaparecendo por si mesmo ( seleção “natural”). Algumas espécies vão crescendo e multiplicando, enquanto que outras linhas de evolução se fecham, sem possibilidade de ultrapassar certo ponto.
As formas mais elementares da vida são as bactérias e os protozoários. Crescendo a complexificação, vão aparecer organismos mais ricos e mais diferenciados, primeiramente os vegetais, aos quais falta ainda a sensibilidade, porque eles não têm sistema nervoso (embora a ciência atual descubra um certo grau de sensibilidade elementar até nas plantas). Na evolução, as plantas representam um “beco sem saída”, porque, por mais que se multipliquem as espécies vegetais, elas nunca conseguirão chegar até a um nível superior de vida, que só se daria pela aparição de células nervosas.
Outras formas superiores de vida serão dotadas de sistema nervoso. A célula nervosa é a maior célula, imensa e complexa, regendo todo o organismo do animal e dando-lhe a sua autonomia. Portanto o animal, ao contrário da planta, não ficará amarrado a um local ou a uma situação particular, mas se desloca para procurar condições melhores de vida.
O sistema nervoso pode ser rudimentar, como nos vermes ou moluscos. Nos insetos, o sistema nervoso pode atingir um alto grau de perfeição. As formigas, por exemplo, são os seres que mais se aproximam da inteligência, ou consciência de si. Mas o sistema nervoso, por ser composto de células gigantes, precisa de espaço. O sistema nervoso é ligado à massa do cérebro, dependendo diretamente do tamanho do crânio (“caixa cerebral”). Já que os insetos não são vertebrados, isto é, que não têm ossos, mas têm a casca do organismo do lado de fora, eles não têm condições de crescer muito em tamanho, sob pena de se tornarem perigosamente frágeis. Portanto, os insetos também representam uma linha barrada, um beco sem saída, incapaz de chegar até o ponto da inteligência, da consciência de si, que constitui a perfeita autonomia.
Os vertebrados têm a sua estrutura óssea por dentro, o que lhes permite crescer muito mais em tamanho. A vida começa no mar, com os peixes. Mas a vida vai invadir também a orla marítima com os anfíbios que começam, a sair do oceano primitivo. Deles vão sair as aves.
Mas a linha decisiva, na evolução, é a dos mamíferos, porque é neles, mais do que nos peixes e nas aves, que a caixa do crânio terá condições de crescer mais e se desenvolver.
Entre todas as espécies de mamíferos, é a mais fraca que vai conseguir superar as outras. Os símios, porque não têm nenhuma defesa natural e porque tampouco são velozes para escapar na corrida, tornar-se-ão trepadores por necessidade vital. Foi assim, trepando-se nas árvores para fugir dos seus inimigos, que os macacos perderão pouco a pouco a sua estrutura horizontal, para aproximar-se da posição vertical. As duas patas dianteiras, que já não servem para correr, mas para trepar e se alimentar, desenvolverão capacidades apreensivas para ajudar na escalada e na alimentação (frutas apanhadas nas árvores). Por este próprio fato, já não era mais necessário que os queixos fossem muitos compridos, como acontece nos outros mamíferos que precisam apanhar a sua alimentação no chão, já que as patas dianteiras estão especializadas para a corrida. O símio liberou as duas patas dianteiras e assim leva o alimento à boca com as mãos. Este por menor é decisivo. Pois o queixo se encurtou e, paralelamente, a caixa do crânio cresceu, ponto essencial para que possa aparecer um sistema nervoso autônomo, isto é, a consciência. Quando isto aconteceu, depois de milhões de anos de lenta evolução, já não era um animal levado cegamente por instintos incontroláveis, mas Homem inteligente, capaz de decidir por si mesmo e de assumir a responsabilidade da sua vida.
O despertar do homem foi muito vagaroso; demorou milhões de anos e está longe de seu termo ainda. Estamos apenas no início da tomada de consciência (conscientização, no sentido de Teilhard) da Humanidade. O Homem começou a descobrir que ele era diferente dos outros animais da floresta. Ele notou, pouco a pouco, que podia inventar coisas novas para se defender ou alimentar, usar o bastão, o fogo, trabalhar a pedra, etc., fazer progressos técnicos, que os outros animais não faziam de maneira alguma.
Quando o Homem começou a despertar e a entender a sua condição única no mundo, Deus começou a se revelar a ele, na medida em que tinha condições de entender (Gl 4, 1). Quando cresceu mais e inventou a escrita, Deus se revelou a ele pela Bíblia, até que, ultimamente, quando o Homem se tornou adolescente, Deus lhe deu o seu próprio Filho, nascido de uma Mulher, para revelar-lhe o seu destino definitivo (o novo Adão) e a sua dignidade de Filho de Deus (a ressurreição e a divinização do Homem na ressurreição do Senhor Jesus).
2. Evolução da Bíblia
Do ponto de vista cristão, nada há no evolucionismo assim entendido que contradiga ou seja incompatível com a Revolução judeu-cristã. A Bíblia não se interessa em explicar o Como da criação; ela não destrincha o mecanismo do universo, mas explica o sentido religioso da criação e a significação da criação para o Homem, assim como o lugar do Homem no universo. Para a Bíblia, a criação é o projeto de Deus supremo e todo-poderoso. Portanto, a criação é o não pode ser “acaso”, nem “absurda”, mas obra de amor, orientada por Deus para Homem, termo e convergência do universo. Os sete dias do Gênesis revelam toda a obra da criação convergindo e culminando na criação do Homem como no seu objetivo último.
Na Bíblia, Deus tomou barro para fazer o Homem. No evolucionismo, ele nasceu de outro ser vivo. A diferença é quase nula. É importante não se deixar levar pela imaginação: “Eu não sou filho de macaca, não!”. Isso é puramente sentimental. Você não é filho de macaca, você é filho de Deus, porque a macaca nunca na vida teria condições de dar à luz um homem! Só Deus pode.
Na perspectiva da evolução, quando a matéria passou do estado de plasma para o átomo, a diferença observável era quase nula. Nenhum cientista, - se tivesse havido naquela época – com os microscópios mais aperfeiçoados, teria tido condições de observar o fenômeno na sua origem, ainda muito menos suspeitar as suas conseqüências decisivas. No entanto, a diferença qualitativa representava uma nova criação. Era uma coisa inaudita e genericamente diferente: a matéria indiferenciada começava, dava o primeiro passo duma diferenciação e enriquecimento mútuo e fecundante. A matéria, uniforme e monótona na forma de plasma, começa a se diversificar e multiplicar num grande número de corpos especificamente distintos.
Quando as moléculas se organizaram para formar a primeira célula (ao “acaso”, ou porque uma força tangencial, tal qual um imã, os fazia se ajuntarem, eliminando sucessivamente as formas não viáveis, não sucedidas da associação, enquanto as viáveis, assustadoramente, se multiplicavam), ninguém poderia ter notado o fato. Mas a criação tinha dado um pulo para frente incomparavelmente maior do que aquele pulo do plasma para o átomo. Era uma nova criação, uma coisa imprevisível e qualitativamente diferente da matéria inanimada anterior.
Da mesma maneira, se aconteceu (é apenas uma hipótese científica bastante aceita) que uma macaca, um belo dia, deu à luz um Homem, aquela macaca, é claro que nunca notou a mínima diferença; muito menos do que a galinha que choca ovos de pata. O Homenzinho, por sua parte, achou a coisa mais natural do mundo ser criado e amamentado por aquela macaca carinhosa que lhe queria bem do seu jeito; porque nunca soube de outra coisa, como aquelas crianças da Índia que, segundo dizem, foram criadas por lobas, assim como Rômulo e Remo, os fundadores de Roma.
No entanto, havia acontecido uma coisa inteiramente nova e inesperada, uma criação nova, um mundo novo. Em termos qualitativos, existe uma diferença muito maior entre a macaca e o Homem, do que a macaca e o plasma primitivo, ou mesmo do que entre a macaca e o nada. Para Deus, tanto faz tomar um boneco de barro e soprar nele, ou fazer uma macaca dar à luz um Homem.
O pulo será maior ainda, quando duma Mulher nascerá o próprio Filho de Deus. Na hora em que aconteceu, ninguém soube nem percebeu (só Deus!). Exteriormente, ninguém podia notar a diferença , nem com raios X, ou instrumentos mais aperfeiçoados.
Assim também, ninguém – nem com os instrumentos mais sofisticados – poderia ter notado a diferença entre aquela macaca e o Homenzinho que nascera. Só Deus sabia. Mas a diferença entre aquela macaca e o Homenzinho que ele criava com carinho era muito maior do que a distância entre uma extremidade do Universo e a outra (bilhões de anos de luz!). Para passar do plasma até a macaca, isto custou bilhões de anos. Para passar da macaca até o Homem, foi um instante só; mas aquele instante percorreu uma distância muito maior do que aqueles bilhões de anos.
Conseqüentemente, não há nada, na teoria da evolução, assim apresentada (Teilhard de Chardin, por exemplo), que contradiga à Bíblia. O ponto de vista é diferente. A Bíblia reflete sobre o lugar do Homem no universo, sobre o domínio absoluto de Deus. Há um só Deus. O universo não é o resultado de uma desarmonia entre os deuses, nem é o fruto do “acaso”, mas o fruto de uma harmonia, de um planejamento organizado, do qual o Homem é o ponto de convergência (Cl 1, 15-20).
Teilhard vai mais longe ainda na linha da “evolução”. Extrapolando o campo da ciência, para entrar na perspectiva da fé. Ele vê Jesus ressuscitado como o termo “necessário” e lógico de toda a evolução vital. A matéria indiferenciada tendia – sem o saber – rumo à matéria organizada. Esta rumava, inconscientemente (porque não tinha “consciência”!), ao passo da Vida. A Vida, por sua vez, tendia, por um dinamismo interno misterioso, até o passo da consciência (Homem). A consciência, por sua vez, fica nas dores do parto, até que desemboque na eternidade divina, eternizada, perfeito, Consciência pura e não mais embaraçada pelas opacidades da carne. A ressurreição do Filho do homem representa, para Teilhard, o ponto o ponto final e necessário de toda a evolução que começou com a passagem do plasma para o átomo. Portanto existe, na própria matéria, um dinamismo (uma “necessidade”) que a faz se superar continuamente. Como o dizia Agostinho: fizeste-nos para ti e a evolução não pára até que repouse em ti! Isto não é panteísmo, como foi censurado, porque não se trata de determinismo materialista, mas de um plano misterioso de Deus, que fez tudo convergir em Cristo ressuscitado (Ef 1, 3-14). Se este plano misterioso divino é ou não (e até que ponto) discernível para a ciência profana, é o problema contestado entre Teilhard e Monod.
A Bíblia confirma a intuição mais profundo de Teilhard. Não apenas Cl 1, 15-20, mais muitos outros textos: o Prólogo de São João, mostrando a Palavra de Deus, ativa desde os inícios da criação, desenvolvendo as suas virtualidades e as suas energias, até se manifestar plenamente o Filho Primogênito (Jo 1, 1-18). A Primeira Carta aos Coríntios, mostrando O Poder de Ressurreição de Jesus atingindo todas as camadas da criação, “até que Deus seja tudo em todos” (1Cor 15, 15-30). A Carta aos Romanos, afirmando que a criação inteira está nas dores do parto até a Revelação dos Filhos de Deus (Rm 8, 15-30). A Carta aos Gálatas, afirmando que o herdeiro deve crescer, juntamente com os elementos deste mundo, até chegar à idade da emancipação, época em que ele será manifestado em toda a sua dignidade de Filho de Deus (Gl 4, 1-7). A Carta aos Efésios, dizendo que Jesus “recapitula” em si toda a criação (Ef 1, 3-14) e afirmando que Jesus, pela sua ressurreição recebeu toda sua plenitude e que vai plenificando tudo em todos (Ef 1, 15-23). A Carta aos Hebreus, afirmando que todos os homens do passado estavam vivendo, na escuridão da fé (= ”inconsciência”, no vocabulário de Teilhard), aquilo que ira se revelar plenamente em Cristo (Hb 11). O Apocalipse, que mostra o Poder secreto e escondido de Jesus Ressuscitado realizando-se através da história tumultuada dos homens e das nações. O próprio título de “Filho do Homem” demonstra que Jesus recapitula em si toda a história da humanidade (Ef 1, 10) Os hinos da Sabedoria do Antigo Testamento (Pr 8, 22-31; Sb 7,22 – 8,1) afirmando que toda a obra da criação não é um “acaso”, mas um plano (“desígnio” Ef 1, 9-10) misterioso de Deus, culminando na salvação dos homens em Cristo.
O evolucionismo, como teoria científica, procura saber o “como” do aparecimento das espécies, quer saber do “mecanismo” da criação. A Bíblia, pelo contrário, reflete no sentido do Universo e no lugar do Homem na criação divina. Não lhe interessa o mecanismo das coisas. Isto lhe parecia curiosidade fútil ou, talvez idolatria: pretensão do Homem de controlar o Universo, no lugar de o receber de Deus. Hoje em dia, sabemos que a ciência tem a sua legitimidade e até necessidade, mas os pontos de vista são diferentes. O lugar do Homem no Universo é a sua vocação. Ele foi consagrado por Deus, como imagem e representante legítimo de Deus de Deus, continuando a obra de Deus na terra, colocando a criação inteira a serviço do amor, até a sua plenificação em Cristo ressuscitado.
Jesus Cristo, o Homem perfeito, está dizendo: “Como o meu Pai trabalhou durante seis dias para criar este mundo, eu agora trabalho, para completar a obra do meu pai até fazê-la desabrochar na nova criação” (Jo 5, 17). A criação não é um fenômeno que aconteceu bilhões de anos atrás e que nós agora investigamos. A criação é um processo dinâmico que acontece agora e no qual o Homem, representante legítimo e continuador de Deus, tem um papel importante e insubstituível para cumprir. Deus começou a criação sozinho, mas ele não pretende terminar só. O Homem tem a vocação de completar em si a obra da criação, realizando, com Deus (pelo Espírito de Deus), um mundo novo, onde não haverá mais injustiça, pobreza, choro, fome, doença, tristeza, morte, mas onde tudo será amor, alegria, paz e união. Este é o mundo que o cristão começa a edificar desde agora, com o Poder de Cristo ressuscitado, que é o Homem novo, o baluarte da nova humanidade, o protagonista do mundo novo. Jesus Cristo ressuscitado é o símbolo, a “bandeira”, o agente e o sinal vivo do mundo novo que já começou.
Adão é o ponto de partida duma humanidade ainda engatinhando, sujeita ao erro, à morte, ao pecado, mas já chamada a lutar até a vitória que só conseguirá no novo Adão, Jesus Cristo ressuscitado, que levará a Humanidade ao seu termo verdadeiro, a nova e perfeita criação, inaugurada pela Ressurreição de Jesus.
Pe. Caetano M. de Tillesse; Revista Bíblica Brasileira (RBB) 1984, N 1