A fim de compreender Jesus, em particular no momento de sua última refeição com os discípulos, é necessário mergulhá-lo em suas raízes. Cada vez mais a pesquisa mostra o quanto Jesus se inscreve numa história e numa cultura, sem a qual fica ininteligível. O mesmo acontece com a eucaristia instituída por Cristo e praticada pelos primeiros cristãos.
• Pré-história da Páscoa
A narrativa da Páscoa pode ser lida em dois lugares da Bíblia: Ex 12,1-20 e Dt 16,1-8. Escrita muito tempo depois dos acontecimentos, com certeza durante o exílio, essa narrativa comporta diversas camadas.
Atualmente a maioria dos exegetas estão convencidos de que a festa da Páscoa não começou de modo absoluto no Êxodo, mas que, nesses momentos históricos, revesti-se de uma nova significação. Existia provavelmente, no tempo dos patriarcas, uma festa que já se chamava pesah: quando os nômades, na primavera, se preparavam para deixar seus acampamentos, em busca de outras pastagens, ofereciam às divindades um sacrifício para pedir a fecundidade para os rebanhos e, de modo mais geral, a proteção contra os poderes “exterminadores” simbolizados pelo “flagelo destruidor” (Ex 12,13). Os seres mais ameaçados eram os recém nascidos que, pela primeira vez em as vida, empreendiam uma viagem uma tanto arriscada. Então, para conjurar a violência ameaçadora, separava-se um desses animais nascidos a pouco, a fim de lhe conferir o poder sagrado, e depois o chefe da família o imolava. O sangue do animal servia de sinal de reconhecimento para o flagelo destruidor, que poupava as tendas marcadas com o sangue do animal: essa talvez, a origem da palavra “páscoa”; com efeito, em hebraico existe um verbo pesah que significa “mancar”, portanto, “saltar” por cima das tendas e “poupar”.
Todos os anos, à volta da primavera, os hebreus repetiam o rito herdado de seus antepassados. Mesmo quando deixaram de ser nômades, em particular durante a longa estada no Egito, conservaram essa prática evocadora de sua infância e que consolidava a sua identidade. Os descendentes dos patriarcas, oprimidos, tornados escravos, ligam-se novamente às suas raízes reproduzindo o rito dos antepassados.
• A história
Certo ano, pelos meados do século XIII antes de Cristo, esta festa assumiu um aspecto completamente novo que se tornará, na memória de Israel, um verdadeiro começo e apagará quase de todo os vestígios do primeiro rito.
Naquele ano a saída devia ser sem retorno, início de uma nova aventura, a caminhada para a terra prometida. Doravante é a saída do Egito que celebrarão, isto é, um acontecimento histórico, e não mais o ciclo da primavera. Da primeira festa, subsistirão muitos elementos: a época (primavera), as rubricas e detalhes (animal sacrificado, alimento, rito do sangue); o que mudará é essencialmente o sentido: a referência à entrada histórica de Deus na história de um povo. A partir de então, páscoa é o rito fundador, pelo qual, todos os anos o povo de Israel celebra a saída do Egito, a passagem da escravidão para o serviço de Deus, da morte para a vida.
• A releitura
A narrativa do Êxodo sobre a Páscoa não tem como primeira função a de ser um relato histórico. Sua função não é de contar detalhadamente o que aconteceu na famosa noite em que Israel saiu do Egito, mas como os judeus celebravam esse acontecimento: essa narrativa é uma narrativa litúrgica.
Esta particularidade litúrgica transparece na serenidade do tom, nada é deixado ao acaso: o tempo de separar o animal é preciso; sua dimensão também, assim como o número dos participantes, o que se deve comer, e como... Numa palavra, rubricas litúrgicas que refletem um tempo muito longínquo.
Em ambos os relatos da páscoa, a festa de pesah acha-se estreitamente associada à festa dos ázimos (os pães sem fermento). Na origem das duas festas não havia nenhuma relação entre elas, sendo a primeira um rito de nômades e a segunda uma prática ligada à população agrícola e sedentária, que queria garantir a proteção das divindades responsáveis pela prosperidade do solo. Com sua espantosa capacidade de assimilação crítica, Israel adotará esta festa conferindo-lhe uma nova significação. Situada aproximadamente no mesmo período que a páscoa, acabará por fundir-se com ela, a fim de se tornar, com ela, um memorial da saída do Egito.
Quatro seriam os motivos para a unificação destas duas festas:
1. Um motivo de local: ao entrar na terra prometida, Josué oferece a páscoa que dá término ao Êxodo.
2. Um motivo de data: a páscoa nômade cai no dia 14 de Nisan, quer dizer, pouco antes, durante, ou logo após os sete dias da festa sedentária dos ázimos.
3. Um motivo histórico: desde a época dos reis, a obrigação de subir ao Templo de Jerusalém para a festa dos Ázimos ofusca a Páscoa, celebrada em família. Sob Josias em 622 a.C. a redescoberta da Lei confere novo rigor à páscoa: a celebração de Josias no Templo não menciona os ázimos. Ambas as festas vão se encontrar numa mesma semana festiva.
4. Um motivo simbólico: tudo indica que a festa pascal tenha mudado o sentido da festa dos Ázimos, ali introduzindo a referência do Êxodo.
• De Josias a Jesus
Estamos habituados a ouvir dizer que a páscoa é a festa central no Antigo Testamento; ora, quando se percorre a Bíblia, constata-se que raramente é mencionada a celebração da Páscoa. Quando os hebreus atravessam o Jordão (Js 5, 10-12), recebem a circuncisão e celebram a páscoa; depois disso, há um prolongado silêncio, talvez devido ao caráter familiar e local desta festa da páscoa? Este gênero de celebração pertence à crônica familiar.
Importante guinada é devida ao rei Josias. Graças ao segundo livro dos Reis capítulos 22 e 23. Durante os trabalhos de reconstrução do Templo, os operários encontram por acaso um livro no qual se reconhece o núcleo do Deuteronômio. Josias descobre neste livro um ambicioso programa de reforma religiosa, resumido em três termos: um só Deus, um só povo, um só santuário. A centralização do culto ficará estabelecida, durante mais de 650 anos, até o fim de Jerusalém, em 70 d. C. O próprio Jesus celebrará a páscoa dentro do quadro imposto por Josias. É importante ter isso em mente se quisermos compreender o sentido da última refeição de Jesus e de sua morte.
Ir Franklins Marques Torres, NJ (Noviço do Instituto Religioso Nova Jerusalém e Graduado em Licenciatura em Química pela Univercidade Federal do Ceará)
- Eucaristia na Bíblia, Cadernos Bíblicos, Ed. Paulus, 1985
Ir Franklins Marques Torres, NJ (Noviço do Instituto Religioso Nova Jerusalém e Graduado em Licenciatura em Química pela Univercidade Federal do Ceará)